sábado, novembro 15, 2008

"O Piano" (1993) - Por Elis Campos (ATT: SPOILER)


Quem ainda não viu o filme, por favor, não leia o texto a seguir.

Segunda parte: Análise um pouco mais aprofundada do filme (sem comentários técnicos) - vale lembrar que é uma interpretação completamente pessoal (e como ser impessoal?)
Att: Aqui tem SPOILER
.............. Para a resenha clássica, leia o post anterior.

O piano não é só o título desse filme. É a chave que permite desvendar muito de seus personagens e as relações que eles mantêm entre si.

O piano pode ser encarado como a própria Ada. O motivo por ela antipatizar seu marido foi sua recusa em levar o piano. Recusando-se a carregar o instrumento e considerando-o dispensável de sua atenção, Stewart atingiu diretamente a mulher, já que o piano é sua alma e a música sua forma de comunicar-se com o mundo.

Ao levar Ada à beira-mar, para tocar o piano, Baines assume, de certa forma, o papel que o marido não assumiu. Ele dá a atenção à necessidade de Ada de encontrar seu instrumento. É nesse momento, quando ele a vê sorrir, feliz, que ele se apaixona. Pela música, pela voz da mulher.

A forma que ele encontra, portanto, de a atrair para si é adquirir o instrumento. Ele não tem outros meios de fazê-la voltar a atenção pra ele, a não ser pelo piano. Ele é analfabeto, bruto e índio – posições completamente desfavoráveis naquele contexto, que acabariam com suas possibilidades de ser socialmente desejado e aceito por uma mulher branca, num ambiente de brancos. Em cenas mais adiante, quando Stewart está na casa de suas amigas – todas brancas, num ambiente predominantemente ariano – Baines também toma café, mas do lado de fora do círculo de conversas dos demais. Ele se apaixonou por Ada quando a viu tocar. Então, o que fazer para trazê-a pra junto de si? Trazer o que ela mais ama, algo sem o qual ela não possa viver. Pode haver alguém que ache que esse meu pensamento é cruel, que estou encarando o personagem como um tipo de “interesseiro”; por favor, não pense assim! É justamente o contrário. A atitude de Baines, ao meu ver, foi delicada e, desde já, um ato de amor – proporcionar prazer tanto para si (que desfrutava, através do piano, da companhia da amada) quanto para o ser amado (dando a Ada a oportunidade de ver e tocar seu piano).

O homem que nos aparecia até agora um tanto brutal revela-se o oposto. Apesar de seu iletrismo e “ignorância”, Baines contrata um afinador pra cuidar dos reparos no piano. Como um bruto conceberia essa idéia? É a partir daí que percebemos que vazio, mesmo, é Stewart, que apesar de seu possível “nível mais elevado” não tem a mínima sensibilidade pra compreender a mulher, nem está atento à tristeza de sua esposa pela ausência do piano. Ada, que julgava Baines um grosso, surpreende-se quando nota o piano afinado. Baines percebe a surpresa de sua amada, e fica feliz em vê-la satisfeita. Mesmo assim, ele não diz que mandou afinar o piano. Talvez porque queira revelar-se, aos poucos, um homem bem diferente daquela idéia que ela concebe.

Baines toma uma atitude de coragem e toca em Ada. É aí que um dos elementos da paixão – o toque – surge. Mas o toque de Baines não é de malícia. Na verdade, aos meus olhos, nenhuma de suas atitudes é. Ele é um ingênuo, puro, que acha que sua única oportunidade de conquistar a mulher é usando um tipo de “força bruta” – obrigando-a a submeter-se aos seus carinhos em troca de outra coisa (as teclas do piano). Ele não sabe lidar bem com seu novo sentimento, e acaba trocando os pés pelas mãos, pela inexperiência.

O índio é freqüentemente retratado como puro, lidando com certa ausência de malícia e normalidade com o que se refere àquilo que, ao olhar do branco colonizador, é passível de veto. A cena em que Baines e outros índios conversam enquanto ele lava roupas é um desses momentos. A índia fala que Baines precisa de uma mulher, que está muito só. O diálogo travado entre o grupo, apesar de tocar em pontos que seriam “normalmente” delicados, não carrega nenhuma malícia. A índia fala sobre o assunto e Baines não se sente constrangido. Tudo parece perfeitamente normal pra eles.

É como na cena em que, após espiar a mãe e Baines deitados juntos, no chão, a menina imita, em troncos de árvores, os beijos que presenciou, enquanto brinca com as outras crianças indígenas. As índias adultas que estão com as crianças não encontram nenhum problema na brincadeira, mas ao ver o que a menina está fazendo, Stewart a repreende e diz que o ato é vergonhoso. Nessa determinada situação aparece o contraste entre a ausência de malícia do índio e o pensamento maldoso do europeu colonizador, que acha a mera reprodução do ato de beijar alguém uma atitude ofensiva.

Outro momento, ainda mais emblemático, é na cena do teatro. Os índios assistem à peça teatral ao estilo europeu – elemento, este, que não faz parte de sua cultura – e se revoltam na cena em que o marido ameaça cortar os dedos da mulher. Eles partem pra cima para defendê-la, porque fazem parte de seus costumes defender a vítima e atacar o agressor, e eles acreditam estar não diante de uma ficção, mas de um acontecimento real.

ISSO NOS REMETE...

... à cena em que, recebendo a tecla do piano que tem gravada uma declaração de amor de Ada para Baines, Stewart parte armado com um machado para cortar o dedo de sua mulher. É uma forma de punir Ada, cortando um dedo seu – instrumento necessário para tocar o piano – e de desafiar Baines, já que, cultualmente, ele jamais admitiria ver um homem atacando uma mulher, principalmente a mulher que ama. Stewart desafia Baines, enviando-lhe o dedo cortado e a mensagem que diz que, se ele tentar ver Ada novamente, ele a fará perder outro dedo.

VOLTANDO:

Uma das primeiras cenas de intimidade entre os personagens de Harvey Keitel e Holly Hunter é quando ele pede que Ada levante a saia, e ele toca a pele dela por um pequeno furo na meia. Já foi considerada uma grande invasão da intimidade da mulher, que levantou a saia e exibiu um minúsculo pedaço de sua perna velada. Esse contato, tão íntimo para a época, revela mais uma vez a pureza de Baines, que trocou algumas teclas do piano por um simples toque, feito por um minúsculo buraco.

Mais à frente, percebendo que ultrapassou os limites ao compartilhar total intimidade com Ada, Baines sente vergonha pelo fato de trocar peças do piano por atos amorosos. Ele lhe diz que a situação faz dele um miserável e dela uma prostituta. É aí, ao voltar triste pra casa, que percebemos que Ada também se apaixonou. Ela continuou a ir não só pelo piano, mas pelo amante.

Posteriormente, Ada retorna à casa de Baines. Ele está doente desde que devolveu o piano à sua dona. Ela chega e tenta transmitir um pouco do que sente pelo olhar, mas Baines não consegue entendê-la. É aí que os dois amantes se revelam verdadeiramente apaixonados. Ada, muda, incapaz de responder, tenta falar com os olhos. É quando os dois têm o primeiro contato carnal genuinamente amoroso, em que não há trocas nem interesses envolvidos. Do lado de fora, o marido de Ada espiona e nota que Baines, agora seu rival, toca livremente em sua mulher, ato que lhe é vetado. O marido toma a posição de voyeur, e espiona os amantes até a hora em que Ada sai.

No dia seguinte, Ada segue o caminho da casa de Baines para encontrá-lo. No dia anterior ele havia pedido a ela que voltasse, caso ela o estivesse amando, realmente. Mas o marido a segue e a surpreende no caminho. É quando Ada fica numa espécie de cárcere em sua própria casa. O marido fecha todas as janelas e portas pelo lado de fora, impedindo a esposa de sair e encontrar-se com o amante. Ele alega que fez isso temendo ter a casa invadida pelos maoris.

ISSO NOS É EXPLICADO POR...

... cenas anteriores, em que os índios foram receber seus pagamentos. Stewart segura um pote cheio de moedas, e tira algumas poucas pra distribuir entre os trabalhadores. Mesmo segurando um pote lotado de dinheiro, ele alega que não pode pagar mais. É quando os índios tiram o pote de suas mãos e levam o dinheiro consigo. Eles vivem em exploração, condições precárias e recebem mal por seus trabalhos. Stewart não entende o que a terra significa pra eles, e apesar de toda recusa que recebe quando quer comprar propriedades de alguns índios maoris, ele insiste, dizendo a Baines, depois, que não entende para quê os nativos querem as terras, se não as queimam para o cultivo. Os índios têm uma noção de respeito e conservação das terras que os colonizadores são incapazes de entender. Para os brancos, as propriedades têm de ser cercadas – para marcar o domínio, a posse, a exclusividade -, e não teriam nenhuma serventia se não fossem exploradas.

VOLTANDO:

Dias depois, o marido volta atrás de seu ato, na esperança de que a mulher o ame algum dia. Ele lhe “faz um voto de confiança e dá mais uma chance”, abrindo as janelas e portas. Stewart faz Ada lhe prometer que não sairá pra encontrar-se com Baines. Ela balança a cabeça e concorda. Quando o marido sai, ela retira uma importante tecla do piano e escreve nela uma declaração de amor para Baines. Pede que Flora vá à casa dele e lhe entregue o embrulho, mas a menina demonstra contragosto e diz que não vai. Depois de muita insistência da mãe, Flora vai, mas muda de caminho e resolve entregar o embrulho a Stewart.

Interessante, porque Baines não sabia ler. Portanto, não iria entender nada do que estava escrito na tecla. Mas o significado, aqui, não são as palavras, mas sim a própria tecla. Ada só faria o sacrifício de retirar uma parte de seu piano por amor. Enviar a tecla a Baines foi uma demonstração de afeto, uma afirmação de seus sentimentos; foi, também, uma maneira de avisá-lo de que ela não foi lhe encontrar porque algo a impediu.

É quando acontece a triste seqüência em que vemos a mulher ser arrastada pelo marido, que, aos gritos, lhe ordena que ela lhe diga se é Baines, mesmo, que ama. Lhe foge completamente o fato de que Ada é muda.

À noite, quando Ada está na cama, adormecida, com a mão enfaixada, Stewart tenta ter relações sexuais com ela. É quando a mulher acorda e olha pro marido. Nessa cena se presencia uma mudança incrível na fisionomia de Sam Neill. É como se Stewart estivesse escutando a voz de Ada. A seguir ele vai, armado, à casa de Baines. Lá, ele tem um diálogo com seu rival bastante interessante. Ele fala do rosto de Baines, de suas tatuagens – o que ele teria de tão diferente, de melhor, que a fez preferir o índio ao branco? – é quando ele pergunta se, no último dia em que os amantes se encontraram, Ada lhe falou alguma coisa.

ISSO NOS REMETE...

... à cena em que Ada e Baines estão juntos, e Baines parece ter ouvido Ada dizer alguma coisa. Como Stewart espionava, ele ficou na curiosidade de saber se a mulher falou com o amante. Quando Baines diz que não, que Ada não disse coisa alguma, Stewart se alegra. Ele se alegra porque crê que é o único que tem o trunfo de compreender sua mulher, mesmo sem palavras. É uma “exclusividade”, só para ele. “Eu a entendo aqui” – ele diz, apontando pra própria testa – “Ela não fala nada, mas é como se escrevesse o que pensa em meus pensamentos, como numa folha em branco. Quanto mais eu ouço, mais entendo.”

ISSO NOS LEMBRA...

... a cena em que Ada contava à Flora como era seu pai. A menina pergunta como ela se comunicava com ele, no que Ada responde que palavras não eram necessárias. Era como se o pai de Flora fosse uma folha em branco, onde ela pudesse escrever seus pensamentos.

VOLTANDO:

De certa forma feliz por ser o único capaz de entender o silêncio de Ada, Stewart reproduz o que ela lhe teria dito. Ele diz que está disposto a atendê-la, liberando a mulher e deixando-a ir embora com Baines.
Nas cenas seguintes, já vemos a partida de Ada, Baines e Flora. E, claro, o piano. Já em alto mar, com o piano amarrado ao barco por cordas, Ada “se arrepende” de tudo, e resolve pedir que joguem o piano na água. Ao meu ver, esse é o momento de libertação total para ela: libertação de seu passado, de seus atos e, o mais importante, de sua mudez. O piano é jogado ao mar, e Ada resolve ir com ele. Põe o pé nas cordas, que a puxam com violência, atada ao seu piano. Ada vai afundando, quando decide voltar. Ela consegue soltar seu pé da corda e imergir. É um renascimento. A personagem diz algo como: “Que morte! Que ressurreição!”, e é exatamente disso que se trata. Ada morre pra sua vida antiga, seu passado, e nasce, inteiramente renovada. Ela volta sem a mudez. Portanto, realmente não precisa mais de seu antigo piano. Renascimento, nova vida. Para mim, é o que há de mais belo em todo o filme. O final é uma agradabilíssima surpresa.

..................................................... fim do spoiler

Bem, por aqui vou finalizando os enormes textos que escrevi sobre este filme. Há muito mais o que comentar, mas acho que já o cansei bastante, caro leitor! Quando puder, assista novamente. É um filme lindo, carregado de significados. E como eu digo: cada vez que revemos um filme, vemos um novo filme. Aproveite pra tirar suas próprias impressões, e deliciar-se novamente com essa obra-de-arte digna de todos os elogios.
Grande abraço!
da Elis :-)